Série: A disputa das ideias na atual conjuntura – agora e o futuro, o que temos pela frente?

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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

A conjuntura de 2022 conformou uma dupla crise: orgânica, sob o ponto de vista político de ruptura da institucionalidade estabelecida com a CF/88 e; estrutural, sob o ponto de vista econômico, social e sanitário. Esta crise política, econômica e sanitária está sendo resolvida num quadro de profundo esgarçamento institucional, sendo que a disputa eleitoral e no interior deste quadro institucional em frangalhos acabou sendo a principal opção das forças sociais democráticas, populares e socialista. Fazer um primeiro balanço crítico, não descurando das ameaças ainda no horizonte e dos desafios que estão colocados para o próximo período são os objetivos audaciosos colocados neste artigo que fecha este primeiro capítulo desta obra ensaística.

Retornando ainda ao centro do golpe de 2016, observa-se que a conformação de um bloco de poder precário que buscou fortalecer as relações de dependência internacional com vistas a se recolocar como centro periférico privilegiado, utilizando-se das bases naturais (matéria-prima, terra e commodities em geral) e dos baixos custos salariais (superexploração) como plataforma de completa subordinação internacional, porém sua limitação econômica e a crise sanitária colocada, esgarçou as condições de poder e interação entre os grupos sociais: parte da burguesia conflitou com os setores autoritários básicos, o que se evidencia na crise entre os grupos de poder midiático (GloboEstadoFolha) e os segmentos militares e milicianos (Jair Bolsonaro), algo que ficou bastante evidente durante o segundo turno das eleições presidenciais, temos que analisar o sentido e significado desses choques e a sua profundidade.

Já tratamos em outro lugar do caráter do governo de Jair Bolsonaro e da relativa condicionalidade da sua vitória em 2018, especificamente o acordo entre setores da grande burguesia nacional e internacional, mesmo considerando que o candidato mais representativo para esses segmentos fosse naquela altura o nome do hoje fragmentado PSDB (Geraldo Alkimin). O arranjo que levou Jair Bolsonaro ao governo envolveu além desses segmentos da alta burguesia, o alto comando das forças armadas e segmentos ideológicos conservadores religiosos.

A presença do próprio Alkimin na chapa vitoriosa de Luiz Inácio nos dá a dimensão do aprofundamento da perda de controle que o núcleo da burguesia monopolista brasileira manifestou sobre seus segmentos grandes e médios identificados com o projeto de Jair Bolsonaro, assim como sinaliza o grau da crise orgânica em que nos encontramos. A escalada de conflitos dentro da burguesia brasileira parece estabelecer patamares crescentes de um “tour de force” entre segmentos da burguesia nacional e internacional organizadas em torno de uma lógica programática conservadora, mas de manutenção do “status quo” parcialmente institucional (manutenção da ordem jurídica formal e alguma organização do sistema eleitoral) e a parcela mais decidida da burguesia financeira e da burguesia comercial e vinculada ao agronegócio que topou arrastar o país para uma aventura ditatorial, inclusive com segmentos militares fascistas e muito despreparados.

Chegamos neste final de 2022 com um quadro crítico, mesmo que definido eleitoralmente, com a central vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sendo que a definição da frente ampla estabelecida por Lula, que incluiu parcela considerável da esquerda brasileira e setores conservadores, mais próximos da clássica conformação de um projeto nacional conformou um importante passo para deter o avanço de um regime neofascista no país, porém, curiosamente, nos remete a um ponto anterior a conquistas de direitos e organização social que tínhamos alcançado, algo que também ressoa no programa e significado do futuro governo de frente ampla.

A disputa pelo Brasil continuará: a esquerda democrática e radical somente pode acenar com o projeto de soberania nacional. Não sabemos de fato se caminharemos para uma sociedade democrática, soberana e com a liberdade de viver ou se caminharemos para a continuidade da incerteza histórica, inclusive com a possibilidade de reestabelecimento em futuro próximo de um governo com as mesmas características autoritárias que esse que foi derrotado, escrevo isso no início de novembro de 2022 e o tempo histórico se desdobrará.

Vale aqui fazer algumas observações necessárias ao sentido da intervenção social que pensamos: (i) O governo Lula será um governo de crises e disputas sociais permanentes. Será de crise pois os aspectos macroeconômicos que levaram ao atual quadro não se resolveram, até se agravaram. Temos de um lado a continuidade de um padrão econômico dependente e centrado na exportação de bens primários, essas características não são possíveis de serem alteradas facilmente, mas será necessário buscar meios para uma transição produtiva e de alteração da base reprodutiva econômica nacional. Por outro, a manutenção do atual regime fiscal, baseado no garrote da EC 95/16 (Emenda do Teto de Gastos), torna a gestão governamental uma quimera quase impossível, assim não há como conviver com o referido regime, mesmo que flexibilizado no formato do chamado “arcabouço fiscal”.

(ii) A disputa em torno de projeto de sociedade somente se agravará nos próximos anos, sendo que a vitória parcial nestas eleições serão continua e permanentemente colocadas em xeque. A direita neofascista veio para ficar e seu aprendizado nos últimos anos a coloca como o principal inimigo político, mas não o único. Assim, temos dois exercícios vitais a serem desenvolvidos: a disputa cotidiana, inclusive recriando instrumentos pretéritos, por exemplo, os Centros de Cultura Popular, existentes na década de 1960 e operacionalizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), isso dentro de um novo formato e totalmente autônomo do governo, exercício de ação popular; por outro, temos que aperfeiçoar nossa capacidade de uso e instrumentalização das novas tecnologias, inclusive aperfeiçoando e criando redes sociais de educação popular.

(iii) A organização e mobilização social continua, terá que ser a norma dos próximos anos, algo aprendido com a própria direita. A agenda de mobilização não poderá ser ocasional, terá que ser definida, desde a realidade concreta, mas a partir de organizações nacionais. Neste sentido avançamos, hoje temos além de organizações sindicais e movimentos nacionais, duas Frentes de organização comum de lutas populares (Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo), elas devem ser potencializadas e convocar Congressos Nacionais, cujas pautas serão o debate público e as linhas de intervenção coletiva, isso já deverá ser exercitado desde o início do próximo ano.

(iv) Não podemos renunciar a uma agenda mínima a ser realizada de reconstrução econômica e social nacional.

No decorrer da semana  serão lançadas as próximas partes da série.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).

Referência


José Raimundo Trindade. A disputa das ideias na atual conjuntura: neoliberalismo, resistência e redes sociais. Belém, ICSA, 2023, 316 págs.

Livro DISPONÍVEL AQUI.

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